O Homem amarelo, pintura de Anita Malfatti feita em 1915 e
que esteve na exposição de 1917.
Imagem disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento238102/exposicao-de-pintura-moderna-anita-malfatti-1917-sao-paulo-sp
Já Leu a crítica inteira? Aproveita:
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem
normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os
eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas,
os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem
gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é
Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na
Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai
engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis
imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza,
e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas
rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos
de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins
de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as
mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do
esquecimento.
Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir,
nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia
e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus
tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas
dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é
sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas
psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e
absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma
lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios
imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As
medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos
sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões
cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas,
cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa
alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de
alguma grave lesão.
Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no
homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato
não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a
"interpretação" que o bichano fizer um "totó", um
escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes. Estas considerações são
provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas
tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de
Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum.
Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e
tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos
como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que
alto grau possui um semi-número de qualidades inatas e adquiridas das mais
fecundas para construir uma sólida individualidade artística.
Entretanto,
seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum
impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova
espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e
tutti quanti não passam de ouros tantos ramos da arte caricatural. É extensão
da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor,
caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma
idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de que
sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de
prazer, ou de beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento
de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar,
e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos
sobretudo, aproveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com
grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e
subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de
interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os
entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta.
No fundo, riem-se
uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos.
Arte moderna, eis o estudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem, às
vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira sempre a mesma: arte
moderna. Como se não fossem moderníssimo esse Rodin que acaba de falecer
deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn,
maravilhoso "virtuose" do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio
rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso
poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se
não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas
do pincel, da pena, da água-forte, da dry point que fazem da nossa época uma
das mais fecundas em obras-prima de quantas deixaram marcos de luz na história
da humanidade. Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua
escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. É um carvão
representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em
movimento.
Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz:
eu sou o ideal, sou a obra-prima, julgue o público do resto tomando-me a mim
como ponto de referência. Tenhamos coragem de não ser pedante: aqueles
gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de
carvão em movimento. O Sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés,
fechou os olhos, e fê-lo passar na tela às pontas, da direita para a esquerda,
de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando
riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu tempo, visto como o
resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa
experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no traseiro
voltado numa tela. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando a
tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da
escola cubista, e proclama pelos mistificadores como verdadeira obra-prima que
só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o
público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à
tela quando o truque foi desmascarado.
A pintura da Sra. Malfatti não é cubista,
de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou
a sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um
ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema:
ou é um gênio o Sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como
insignes cavalgaduras, a coorte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a
Steves, de Velásques a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice-versa.
Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas
diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro, de Chabas, e o
carvão cubista do Sr. Bolynson. Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o
formoso talento da
Sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações
desagradáveis.
Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova
atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência,
esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto,
se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O
verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim
o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem
reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar
a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando
elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos
talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo
elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma
"moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de
talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos
"bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de
moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o
seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa
pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos
amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus
apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.
Monteiro Lobato
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