20 dezembro 2017

É HOJE O CENTENÁRIO DA CRÍTICA DE MONTEIRO LOBATO A RESPEITO DE EXPOSIÇÃO DE ANITA MALFATTI

Há 100 anos Monteiro Lobato publicou no jornal O Estado de São Paulo uma crítica à exposição de pintura moderna de Anita Malfatti que ajudou a dar visibilidade aos modernistas paulistas, que culminou cinco anos depois com a Semana de Arte Moderna de 1922.

O Homem amarelo, pintura de Anita Malfatti feita em 1915 e
que esteve na exposição de 1917.
Imagem disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento238102/exposicao-de-pintura-moderna-anita-malfatti-1917-sao-paulo-sp 


Já Leu a crítica inteira? Aproveita:

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.


Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muitos já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sintamos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em "pane" por virtude de alguma grave lesão.

Enquanto a percepção sensorial se fizer anormalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá "sentir" senão um gato, e é falsa a "interpretação" que o bichano fizer um "totó", um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes. Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um semi-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística.

Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de ouros tantos ramos da arte caricatural. É extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de que sai de uma destas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denuncia as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de racionar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta.

No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos. Arte moderna, eis o estudo, a suprema justificação. Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos desta ordem, provenientes da cegueira sempre a mesma: arte moderna. Como se não fossem moderníssimo esse Rodin que acaba de falecer deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso "virtuose" do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas, e dos corpos femininos em botão. Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da dry point que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-prima de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade. Na exposição Malfatti figura ainda como justificativa da sua escola o trabalho de um mestre americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. 

Está ali entre os trabalhos da Sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra-prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de referência. Tenhamos coragem de não ser pedante: aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O Sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passar na tela às pontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não o fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para o outro, revelou-se tolo e perdeu tempo, visto como o resultado foi absolutamente o mesmo. Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no traseiro voltado numa tela. Com os movimentos da cauda do animal a broxa ia borrando a tela. A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclama pelos mistificadores como verdadeira obra-prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender. Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado.

A pintura da Sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou a sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo. Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o Sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalgaduras, a coorte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Steves, de Velásques a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice-versa. Porque é de todo impossível dar o nome da obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro, de Chabas, e o carvão cubista do Sr. Bolynson. Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o formoso talento da
Sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis.


Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes derem sempre amabilidades quando elas pedem opinião. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? E tivéssemos na Sra. Malfatti apenas uma "moça que pinta", como há centenas por aí, sem denunciar centelhas de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos "bombons" que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.

Monteiro Lobato

08 dezembro 2017

CARTA A FAVOR DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA E CONTRA A SUA CENSURA

A FAEB - Federação de Arte Educadores do Brasil protocolou no Conselho Nacional de Educação duas cartas. Uma delas é referente  a liberdade de expressão artística e contra a sua censura.

Leia esta carta na íntegra:


CARTA SOBRE AS MUDANÇAS NO ENSINO MÉDIO DO COMPONENTE CURRICULAR ARTE

 A FAEB - Federação de Arte Educadores do Brasil protocolou no Conselho Nacional de Educação duas cartas. Uma delas é referente  às mudanças do componente curricular Arte no Ensino Médio.

Leia esta carta na íntegra:



ANA MAE INFORMA: COLÓQUIO CRIAÇÃO & CRIATIVIDADE: ENTRE FORMAÇÃO E PESQUISA

Paris, novembro, 20, 21 e 23, 2017

Este colóquio organizado pela Universidade Paris Descartes demonstrou claramente a potência do movimento atual de “Back to Creativity”.

Até meados dos anos 80, em Arte/Educação, muito se falava em desenvolvimento da criatividade como objetivo e metodologia de ensino, mas comumente as ações oscilavam entre a normatividade disfarçada e o mero “deixar fazer”. Houve experiências realmente comprometidas com o processo criador, abafadas pela incoerência da maioria que deixava uma enorme lacuna entre o dizer conceitual e o fazer na sala de aula.

Nos fins dos anos 80 a palavra ‘criatividade’ foi banida dos currículos, das ementas dos cursos e do discurso dos Arte/Educadores. Foi substituída pela palavra “inovação” mais adaptada à nova ideologia de educação para o mercado.

No Colóquio Criação & Criatividade: entre Formação e Pesquisa não ouvimos falar de inovação mas de uma miríade de conceitos mais humanizados acerca de criatividade, como Criação conectada, Criatividade e saúde, Criatividade e existencialismo, Criatividade e somatização, Criatividade e mundo interior, Didática da criação artística, Mediação Cultural e Criatividade, Criatividade e indeterminação artística, Criatividade e Medicina narrativa, etc.

Houve várias apresentações sobre formas de desenvolver e formas de avaliar criatividade assim como de muitas experiências de imersão prática no processo criador de alunos cientistas e artistas.

Destaco a conferencia de Bernard Audie, “Da formação de si à criação”, que enfatizou a participação integral do Corp Vivant, do Corp Vecú e do Corp Vital nos processos criativos. Ele publicará em breve um livro no Brasil.

Outro autor que já é muito lido em português no Brasil, Michel Maffesoli, deu uma magnifica conferencia sobre a “Criatividade e o Cotidiano”.

Falaram vinte e cinco pesquisadores de diversos países, todos convidados pelos organizadores do Colóquio: Dr. Todd Lubart, Dra. Apolline Torregrossa, Dr. Roberto Falcon e Ms. Sidiney Peterson.

Eles convidaram sete pesquisadores brasileiros: Dr. Afonso Medeiros (UFPA), Dra. Vitória Amaral (UFPE), Dra. Valéria Alencar (UNESP), Dra. Leda Guimarães (UFG), Dra. Rejane G. Coutinho (UNESP), Sidiney Peterson (doutorando UNESP) e eu, que já vinha trabalhando em contato com Apolline Torregrossa e Marcelo Falcon há algum tempo.

Participei da última mesa do Colóquio junto com Dra. Marie-Françoise Chavanne, que  foi presidente da International Society of Education through Art (InSEA/UNESCO) com quem muito aprendi a lidar com gestão internacional e usei o que aprendi quando fui também Presidente da InSEA, aliás, a única de um país em desenvolvimento até hoje.

A palestra de Chavanne sobre o renascimento e reconhecimento da Criatividade na Educação como vetor de inteligência e criação ampliou o sentido do Colóquio e indiscutivelmente demonstrou que o mundo de agora precisa de soluções criativas na medicina, na economia, na psicologia, na antropologia, no Design, na Arte/Educação .

Falei em inglês sobre uma categorização de Criatividade, a Criatividade Coletiva, para a qual me inspirei nas metodologias de Gestão e do Design estimulada pelos movimentos Ativistas e pelas redes sociais. Nossa mesa foi considerada a mais política do Colóquio e comentada positivamente pelo público assim como foram muito bem recebidas as palestras dos brasileiros participantes.

Não foram aceitas comunicações no Colóquio mas os estudantes e não convidados puderam participar apresentando posters. Duas alunas da UFPE apresentaram seus posters.

No dia 23 de novembro houve uma reunião na Universidade Paris Descartes coordenada por Roberto Falcon para avaliar o Colóquio e projetar o próximo que será possivelmente na Espanha.

Os brasileiros formaram um grupo de estudos não sei ainda se formal ou informal, mas nos reuniremos em janeiro de 2018.

Vamos ampliar nossas pesquisas!

São Paulo, 30 de novembro de 2017


Ana Mae Barbosa