07 abril 2014

Conversas ao meio-dia com Stella Ramos

Em minha vida pessoal e profissional, como educadora, formadora de equipes ou como público, a ideia de experiência significativa, vinda das ideias de Dewey e Larrosa, é assunto presente de investigações e desejos. Em contraste, a oferta de espetacularizados eventos cotidianos é enorme. A sua hora chegou, ou ainda a melhor viagem da sua vida está aqui, além da certeza de que você nunca sentiu isso antes, entre tantos outros excessos. Num mundo tão hiperbólico, a experiência da delicadeza ganha ainda mais valor.

Para mim as tais experiências significativas, que nos atravessam, fulminantes, no contato com a arte, tem uma frequência relativamente restrita, tesouro recolhido às vezes em situações não imaginadas.

O cinema me traz boa parte delas, e uma vez, ao acaso, me trouxe de encontro a este filme. Tinha ido com um amigo assistir a um filme de que nem me lembro mais, mas nos deparamos com a sala lotada. O único ainda disponível, num concorrido domingo à tarde, era um de título esquisito e obscuro: Kamchatka. Entrei sem expectativa nenhuma, e de algum modo, nunca saí de lá.

A história conta um duro momento na história da Argentina, em que o país se afundava em sua terrível ditadura militar. O filme, no entanto, se foca na narrativa de um menino de 10 anos e sua percepção sobre a fuga de sua família numa tentativa desesperada de fugir do horror das perseguições políticas da época. No lugar de apresentar a história de um país, conta a história de uma família com seus conflitos e afetos, entre consistentes e deslocados, num momento de grande mudança.

Não sabemos os nomes de ninguém da família, no momento em que se mudam para uma linda chácara no interior. Passamos a conhecê-los apenas como pai, mãe, pequeno, avô, avó e Harry, nome escolhido pelo pequeno protagonista, que nos conta tudo por seus olhos investigativos e curiosos.




A descoberta do mundo é aguda para Harry, neste momento. Entre carinhosas metáforas oferecidas especialmente por seu pai, ele tenta reconstruir suas relações com a nova realidade ao mesmo tempo em que se delicia com a presença muito maior dos pais no dia a dia. Lida com a morte no encontro com animais no quintal, e inicia seu treinamento de resistência com uma bela descoberta: um livro esquecido por alguma criança em cima do seu novo armário. Não por coincidência, conta a história do famoso Houdini, escapista que o inspira a ampliar suas capacidades de resistir. 


Junto aos treinamentos inspirados por Houdini, há momentos intensos de alegria e tensão com a família. Os pais, apesar de toda a insegurança da situação, são pais com o mesmo desejo de todos: preparar os filhos para os desafios futuros. Numa das cenas mais marcantes do filme, pai e filho jogam War, um contra o outro. Numa situação de jogo, as hierarquias podem se inverter e os dois ficam em pé de igualdade. Depois de quase ganhar a partida, Harry aprende o que de melhor poderia ganhar naquele momento: que a resistência é feita de força e esperança.



Um filme delicado sobre um tema brutal. Para lembrar, sempre, que há um lugar de onde resistir.

(E onde é que entra Kamchatka nesta história? Para descobrir isso é preciso ver o filme...)


Stella Ramos trabalha com educação não formal, e integra o coletivo Zebra5. Faz do cinema, da literatura e da delicadeza seus refúgios de resistência.


Stella Ramos 
Zebra5 Jogo e Arte www.zebra5.com.br 
contato@zebra5.com.br

2 comentários:

Anônimo disse...

Sensacional!
Neto

Alberto Tembo disse...

Bonito e delicado, como o filme.